segunda-feira, 4 de agosto de 2014
Conversa com o mestre Dominguinhos
Há alguns anos foi lançada em Currais Novos a "Orquestra de Violões do Seridó Oriental", fruto de um projeto cultural que levou aulas gratuitas de violão a mais de 60 pessoas da comunidade. O grupo fez várias apresentações em cidades do Rio Grande do Norte e da Paraíba: Frei Martinho, Santana do Matos, Santa Cruz, Lagoa Nova, Caicó, Acari...
E qual não foi nossa surpresa ao fazer uma apresentação no canal 05 da TV a Cabo local, no Programa "Seridó Caboclo", quando recebemos a notícia de que Dominguinhos estava na cidade e iria dar uma entrevista em meio à apresentação da Orquestra de Violões. Foi nesse dia que tive contato com o vencedor do Grammy Latino por duas vezes, com o CD Chegando de Mansinho (2002) e o Melhor Álbum de Raiz Brasileiro, com o CD e DVD Iluminado (2012).
Dizem que os grandes mestres e a almas iluminadas irradiam humildade e simplicidade de coração. Foi o que senti ao apertar a mão do sanfoneiro mundialmente conhecido e respeitado, um dos sucessores do Rei do Baião. Sereno, de voz mansa, ele sentou ao lado da Orquestra e ouviu nossa singela homenagem através de "Asa Branca", de Luiz Gonzaga, "Ponteio Acutilado", do Quinteto Ramorial de Pernambuco, e "Bicho de Sete Cabeças", de Zé Ramalho, Geraldo Azevedo e Renato Rocha.
Dominguinhos, na sua modéstia, elogiou o trabalho iniciante do grupo e incentivou a futura criação de aulas de sanfona, o que ocorreu em 2013, com a consequente formação da "Orquestra Sanfônica do Casarão de Poesia. Do encontro com o mestre ficou a lição de modéstia, de dedicação no que se faz, do respeito à música como forma de transformação e celebração da vida. Obrigado, mestre Dominguinhos. Que esteja em paz!
quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014
AS “SERIDOLENDAS” DE WESCLEY GAMA - Por Edrisi Fernandes
AS “SERIDOLENDAS” DE
WESCLEY GAMA
Edrisi Fernandes
Muitos acreditam que aquilo que
define uma boa composição musical é a apreciável qualidade de suas partes, e a
música de Wescley Gama tem predicados que autorizam que seja vista quer como
prodigiosas obras instrumentais, quer como excelente poesia, com os naipes dos
variados instrumentos a se articularem de forma singela e harmônica com os
equilibrados vocais, sem excessos ou titubeios. Jim Morrison (vocalista do
grupo The Doors) e Leonard Cohen, são
reconhecidos como grandes poetas e consagrados músicos, da mesma forma como
Renato Russo e Gilberto Gil; são valorizados pela forma como conseguiram
mesclar a boa literatura com a qualidade da sonorização melódica, resgatando o
caráter originário da poesia. Secundado por talentosos parceiros, Wescley faz mais que isso, combinando com raro
talento o rural e urbano, Felinto Lúcio Dantas com Pink Floyd, o clássico e
popular, Villa Lobos com os Beatles, tradição e vanguarda, Luiz Gonzaga com David
Bowie. O álbum “Seridolendas”, de Wescley Gama, é um convite às viagens
sinestésicas, com suas composições que solicitam complexificação (ou seria simplificação?) mediante a evocação ou provocação
de variadas e ricas paisagens visuais (desde as brancazuis até as
ultraístas, com lembrança de Assis Costa), texturas e cheiros da existência. O
título do álbum parece propositadamente polissêmico; através de um exercício de
semântica fantástica descobrimos que as “seridolendas” são muito mais que
lendas do Seridó, posto que patrimônio dos “seridolenses” - étimo que remete às
dolências de semiáridas carnações, pois atesta a percepção do Seridó através
das lentes (latim singular lens; inglês
plural lenses) do mundo exterior ou o
escrutínio do mundo mediante lentes seridoenses.
A ideologia do álbum remete ao
sábio Protágoras ao apresentar o Seridó como medida possível de todas as coisas
– das que foram, que podem ter sido, que são ou que deveriam ser. A adequação
do projeto se revela desde a música inicial, um resgate da Herança que não nos deixa esquecer que foram os indígenas quem
primeiro ocuparam o oco do lugar com suas ocas. Almanaará guarda sob o significado da palavra árabe ali
transliterada (al-manārah),
e que significa “farol”, a metáfora das chuvas como luz capaz de clarear e
fazer desaparecer a negra imagem da estiagem. A potência latente nos “capuchos
de sonhos” é capaz de apaziguar todo Coração
violento ou endurecido aos ares secos, e embalada em onírica nostalgia a pessoa
de Chico Caetano empresta nome e
memória a um poderoso blues que nos lembra como é importante a construção de lembranças
felizes que possam vir a ser, num dado momento, as maiores alegrias da vida de
alguém. “Que bom se todos pudessem ter a alegria de uma criança no Circo!” é o que parece sugerir a
circense balada em que Wescley traz para o álbum a alegria da música dos
ciganos dos Bálcãs, dos cabarés da Belle Époque e dos kletzmers judaicos. Seridó é uma canção de amor bem
embalada, de um amor bonito mas sem abestalhamento; aliás, a sobriedade permeia
as “Seridolendas” de Wescley, e suas Abelhas
voejam ao som de teclados eletrônicos, mas sensatos violoncelos não as deixam
descuidar do mel. A bossa vanguardista de Janela
na manhã traz uma brisa luminosa, e com naturalidade Hoje eu não faço mais café, com pingos de rock progressivo, dá um
recado sem pressa, sem traumas, sem estresse. À pergunta sobre O que a noite traz, Wescley responde
com uma bela poesia lírica esplendidamente musicada, não nos deixando esquecer
a agradável suavidade do disco todo. A branda mudança da claridade do dia para
o orvalho da noite prepara o caminho para um passeio Em torno do mar numa caminhada pianístico-floydiana que parece
colher na orla marítima a recordação de que o mar um dia banhou a região do
Seridó, onde ficaram o sal e a areia, condicionando um Seridó saudoso de mar e fazendo lembrar que o mar ondeia atavicamente
em seu chão.
“Seridolendas” constitui um clamor
provinciano com pujança para ressoar em eco cosmopolita, capaz de concordar com
Analía Testa em que “se queres pintar tua aldeia deves ser universal”[1], mas também
qualificado para fazer cumprir um conhecido vaticínio de Liev Tolstói (Lev
Tolstoy), do qual circulam inúmeras versões: “Canta bem a tua aldeia e serás
universal!”[2]
(os escritores argentinos costumam emendar, parafraseando Astor Piazzola - “com
a condição de que o faças com sinceridade!”). Mais que isso, Wescley faz
recordar outra frase de Tolstói[3]: “Para
que possa haver alguma verdade no que descreves, não deves escrever [apenas] o
que é, mas [também] o que deveria ser”. Assim, suas lendas não são aquelas do
passado, mas as do bemvirá, nem são apenas do Seridó, exatamente por evocarem
aquilo que esse lugar tem de mais seu - sua “terra mineral”, seus ciclos, suas
abelhas, sua música.
[1] Analía H. Testa, Rincón Gaucho: antología del suplemento Campo de La Nación.
Buenos Aires: Emecé Editores, 2004, p. 95.
[2] “Descreve a tua aldeia e te tornarás cosmopolitano;
se tratas de descrever Paris, tornar-te-ás provinciano” (cit. em Francesco Másala, Poesias
in Duas Limbas (Poesie bilingui). Milão: Scheiwiller, 1993, p. 14).
[3] Em “Onde
está a verdade na arte?” (1887);
cit. em Lyof. N. Tolstoï, Essays,
Letters, and Miscellanies (2 vols. em 1), org. e introd. Nathan Haskell
Dole. N. Iorque: Thomas Y Crowell & Co., 1889, vol. 2, p. 186.
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