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quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

AS “SERIDOLENDAS” DE WESCLEY GAMA - Por Edrisi Fernandes



AS “SERIDOLENDAS” DE WESCLEY GAMA

Edrisi Fernandes


Muitos acreditam que aquilo que define uma boa composição musical é a apreciável qualidade de suas partes, e a música de Wescley Gama tem predicados que autorizam que seja vista quer como prodigiosas obras instrumentais, quer como excelente poesia, com os naipes dos variados instrumentos a se articularem de forma singela e harmônica com os equilibrados vocais, sem excessos ou titubeios. Jim Morrison (vocalista do grupo The Doors) e Leonard Cohen, são reconhecidos como grandes poetas e consagrados músicos, da mesma forma como Renato Russo e Gilberto Gil; são valorizados pela forma como conseguiram mesclar a boa literatura com a qualidade da sonorização melódica, resgatando o caráter originário da poesia. Secundado por talentosos parceiros, Wescley  faz mais que isso, combinando com raro talento o rural e urbano, Felinto Lúcio Dantas com Pink Floyd, o clássico e popular, Villa Lobos com os Beatles, tradição e vanguarda, Luiz Gonzaga com David Bowie. O álbum “Seridolendas”, de Wescley Gama, é um convite às viagens sinestésicas, com suas composições que solicitam complexificação (ou seria simplificação?) mediante a evocação ou provocação de variadas e ricas paisagens visuais (desde as brancazuis até as ultraístas, com lembrança de Assis Costa), texturas e cheiros da existência. O título do álbum parece propositadamente polissêmico; através de um exercício de semântica fantástica descobrimos que as “seridolendas” são muito mais que lendas do Seridó, posto que patrimônio dos “seridolenses” - étimo que remete às dolências de semiáridas carnações, pois atesta a percepção do Seridó através das lentes (latim singular lens; inglês plural lenses) do mundo exterior ou o escrutínio do mundo mediante lentes seridoenses.

A ideologia do álbum remete ao sábio Protágoras ao apresentar o Seridó como medida possível de todas as coisas – das que foram, que podem ter sido, que são ou que deveriam ser. A adequação do projeto se revela desde a música inicial, um resgate da Herança que não nos deixa esquecer que foram os indígenas quem primeiro ocuparam o oco do lugar com suas ocas. Almanaará guarda sob o significado da palavra árabe ali transliterada (al-manārah), e que significa “farol”, a metáfora das chuvas como luz capaz de clarear e fazer desaparecer a negra imagem da estiagem. A potência latente nos “capuchos de sonhos” é capaz de apaziguar todo Coração violento ou endurecido aos ares secos, e embalada em onírica nostalgia a pessoa de Chico Caetano empresta nome e memória a um poderoso blues que nos lembra como é importante a construção de lembranças felizes que possam vir a ser, num dado momento, as maiores alegrias da vida de alguém. “Que bom se todos pudessem ter a alegria de uma criança no Circo!” é o que parece sugerir a circense balada em que Wescley traz para o álbum a alegria da música dos ciganos dos Bálcãs, dos cabarés da Belle Époque e dos kletzmers judaicos. Seridó é uma canção de amor bem embalada, de um amor bonito mas sem abestalhamento; aliás, a sobriedade permeia as “Seridolendas” de Wescley, e suas Abelhas voejam ao som de teclados eletrônicos, mas sensatos violoncelos não as deixam descuidar do mel. A bossa vanguardista de Janela na manhã traz uma brisa luminosa, e com naturalidade Hoje eu não faço mais café, com pingos de rock progressivo, dá um recado sem pressa, sem traumas, sem estresse. À pergunta sobre O que a noite traz, Wescley responde com uma bela poesia lírica esplendidamente musicada, não nos deixando esquecer a agradável suavidade do disco todo. A branda mudança da claridade do dia para o orvalho da noite prepara o caminho para um passeio Em torno do mar numa caminhada pianístico-floydiana que parece colher na orla marítima a recordação de que o mar um dia banhou a região do Seridó, onde ficaram o sal e a areia, condicionando um Seridó saudoso de mar e fazendo lembrar que o mar ondeia atavicamente em seu chão.

“Seridolendas” constitui um clamor provinciano com pujança para ressoar em eco cosmopolita, capaz de concordar com Analía Testa em que “se queres pintar tua aldeia deves ser universal”[1], mas também qualificado para fazer cumprir um conhecido vaticínio de Liev Tolstói (Lev Tolstoy), do qual circulam inúmeras versões: “Canta bem a tua aldeia e serás universal!”[2] (os escritores argentinos costumam emendar, parafraseando Astor Piazzola - “com a condição de que o faças com sinceridade!”). Mais que isso, Wescley faz recordar outra frase de Tolstói[3]: “Para que possa haver alguma verdade no que descreves, não deves escrever [apenas] o que é, mas [também] o que deveria ser”. Assim, suas lendas não são aquelas do passado, mas as do bemvirá, nem são apenas do Seridó, exatamente por evocarem aquilo que esse lugar tem de mais seu - sua “terra mineral”, seus ciclos, suas abelhas, sua música.


[1] Analía H. Testa, Rincón Gaucho: antología del suplemento Campo de La Nación. Buenos Aires: Emecé Editores, 2004, p. 95.
[2] “Descreve a tua aldeia e te tornarás cosmopolitano; se tratas de descrever Paris, tornar-te-ás provinciano” (cit. em Francesco Másala, Poesias in Duas Limbas (Poesie bilingui). Milão: Scheiwiller, 1993, p. 14).
[3] Em “Onde está a verdade na arte?” (1887); cit. em Lyof. N. Tolstoï, Essays, Letters, and Miscellanies (2 vols. em 1), org. e introd. Nathan Haskell Dole. N. Iorque: Thomas Y Crowell & Co., 1889, vol. 2, p. 186.